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A grande e fabulosa distopia da falta de utopias

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Cassiano Terra Rodrigues

Correio da Cidadania

original publicado em 30/12/2024

Francis Ford Coppola mostra primeira imagem do aguardado Megalopolis – Jovem Nerd
Me­ga­ló­polis (dir. Francis Ford Cop­pola, EUA, 2024, 2h 18m) é um filme me­ga­lo­ma­níaco. Per­doem-me o tro­ca­dilho, mas é di­fícil evitá-lo. Não é o tipo de filme do qual se sai in­di­fe­rente do ci­nema. Menos gente vai ao ci­nema hoje em dia, eu sei, mas isso não é im­por­tante. Pes­so­al­mente, la­mento não ter visto o filme em uma sala IMAX, o que pos­si­bi­li­taria ver a tela ser di­vi­dida em três, como em al­gumas exi­bi­ções mundo afora acon­teceu. Ima­gino como seria ver esse filme na tela grande de um cine Co­mo­doro, um Ma­jestic, um Astor… Nas telas pe­quenas das pe­quenas salas de ci­nema atuais, como as he­roicas salas do Belas Artes (foi ali que vi o filme), não posso du­vidar, o filme perde boa parte de seu im­pacto.

Como não po­deria perder? O pró­prio di­retor avisou para o tí­tulo do filme ser le­vado a sério – “uma fá­bula” – e o pró­prio filme, por ser fa­bu­loso, nem tanto. O tí­tulo do filme, em in­glês, também in­dica a sub­je­ti­vi­dade exa­cer­bada do di­retor: “Francis Ford Cop­pola’s Me­ga­lo­polis”, isto é, a fá­bula é dele, Cop­pola, o filme é seu. E o que nós, es­pec­ta­dores, fa­zemos com isso?

Pois é. Di­fícil dizer. Eu mesmo me senti in­co­mo­dado muitas vezes du­rante o filme e re­al­mente não posso dizer que apenas gostei ou des­gostei. O que me pa­rece, e não tenho pre­tensão al­guma de dar uma opi­nião de­fi­ni­tiva sobre o que ex­pe­ri­mentei na sala do Belas Artes, é que o es­pec­tador é co­lo­cado numa po­sição des­con­for­tável e nada in­sus­peita. Não penso que Cop­pola sus­peita pro­fun­da­mente de sua obra ou que brinca com seu pú­blico, acho mesmo que ele acre­dita na moral–ou falta dela–da fá­bula que conta e que o incô­modo não é fa­cil­mente re­sol­vido para ele mesmo. Daí, ele re­solve trans­ferir esse incô­modo a nós, na pla­teia, mas não de forma in­con­se­quente, e sim como uma per­gunta, um tanto re­tó­rica ou am­bígua, é ver­dade, mas sem deixar de ser sin­cera.

Para não ficar críp­tico de­mais, tenho de dar al­guns spoi­lers. E devo já de­clarar que não pre­tendo con­vencer nin­guém que tenha visto o filme a mudar de opi­nião, muito menos de­cidir se o filme é bom, ruim, isto ou aquilo. Como des­confio da am­bição fi­lo­só­fica de ra­ci­o­na­lizar obras de arte, prin­ci­pal­mente filmes, con­tento-me, aqui, apenas com a in­di­cação de al­guns ele­mentos do filme que me aju­daram a cons­truir um sen­tido para a minha ex­pe­ri­ência de ci­ne­filia. E tam­pouco es­pero que meu per­curso re­vele al­guma co­e­rência im­plí­cita do filme, pois posso ser mesmo mais con­fuso. Es­pero ao menos não ser exa­ge­ra­da­mente ar­bi­trário.

À pri­meira vista, “Me­ga­ló­polis” é uma re­to­mada, no con­texto da po­lí­tica es­ta­du­ni­dense con­tem­po­rânea, de uma an­tiga his­tória ro­mana. Dois ini­migos po­li­ti­ca­mente po­de­rosos – Cesar Ca­ti­lina (Adam Driver) e o pre­feito Fran­klyn Ci­cero (Gi­an­carlo Es­po­sito) – dis­putam o poder sobre a ci­dade de Nova Roma, uma ale­goria vaga na me­dida certa de Nova Iorque. Ca­ti­lina é o her­deiro da fa­mília mais rica do im­pério. Além de ser um ar­qui­teto bri­lhante, ele é capaz de parar o tempo e está apai­xo­nado pela filha do pre­feito, Julia Ci­cero (Nathalie Em­ma­nuel).

Este é apenas o pri­meiro tema do filme, a sua ca­mada mais su­per­fi­cial, uma re­lei­tura para os tempos atuais da cons­pi­ração contra a Re­pú­blica ro­mana, li­de­rada por Lu­cius Ser­gius Ca­ti­lina no sé­culo I antes da era cristã. De acordo com o prin­cipal opo­sitor de Ca­ti­lina, o se­nador e fi­ló­sofo es­toico Cí­cero, Ca­ti­lina era um po­pu­lista que cons­pirou para der­rubar a Re­pú­blica Ro­mana de­pois de perder três vezes a eleição para cônsul. Cí­cero des­co­briu os planos de Ca­ti­lina e, con­ven­cendo o se­nado a dar-lhe po­deres ex­cep­ci­o­nais de emer­gência, con­se­guiu ex­pulsar de Roma o cons­pi­rador e exe­cutar seus apoi­a­dores sem o de­vido pro­cesso legal. As ações de Cí­cero, no en­tanto, não pas­saram em branco. Após o fim da cons­pi­ração, o po­lí­tico de­ma­gogo Pú­blio Clódio Pulcro acusou Cí­cero de exa­gero e ma­no­brou para que o se­nado o man­dasse para o exílio. O fra­casso de Ca­ti­lina sig­ni­ficou, no fim das contas, um caos po­lí­tico que abriu ca­minho para Júlio Cesar, logo de­pois, der­rotar os côn­sules do se­nado e tornar-se im­pe­rador.

Se­gundo o pró­prio Cop­pola, o filme de­senha uma ana­logia da cons­pi­ração ca­ti­li­nária com o sis­tema po­lí­tico ame­ri­cano. A ana­logia é le­gí­tima, uma vez que os Es­tados Unidos foram fun­dados se­gundo prin­cí­pios de Di­reito Ro­mano. Seus “pais fun­da­dores” – como, lá, são de­no­mi­nados os sete prin­ci­pais po­lí­ticos da In­de­pen­dência e do co­meço do go­verno da nova nação: Ge­orge Washington, Thomas Jef­ferson, John Adams, Ben­jamin Fran­klin, Ale­xander Ha­milton, John Jay e James Ma­dison – pla­ne­javam um go­verno “de­mo­crá­tico”, sem reis, mas com es­cravos. Cop­pola chegou mesmo a ob­servar que a his­tória se re­pe­tiria nos Es­tados Unidos, um país ame­a­çado pelas mesmas forças po­lí­ticas e ten­sões que des­truíram a Re­pú­blica e cri­aram o Im­pério Ro­mano. No filme, porém, a his­tória, se não é far­sesca, é in­ver­tida. Cí­cero, o po­lí­tico con­ser­vador e de­fensor do status quo, não é nada sim­pá­tico; já Ca­ti­lina, apesar de de­ma­gogo e de também se chamar César, pa­rece re­al­mente com­pro­me­tido com uma so­ci­e­dade mais de­mo­crá­tica, ao menos, livre de dí­vidas. Ca­ti­lina, para Cop­pola, é o porta-voz da utopia; o de­ma­gogo ines­cru­pu­loso, o po­pu­lista far­sesco é Clodio Pul­cher (Shia La­Beouf), primo in­ve­joso e res­sen­tido de Ca­ti­lina.

Se to­marmos esse pri­meiro tema a sério, ao menos dois ou­tros podem ser iden­ti­fi­cados. Um deles é a utopia mo­der­nista da ci­dade ideal, o outro, cor­re­lato, a con­fi­ança na cri­ação téc­nica, ou es­té­tica, como forma de re­so­lução dos con­flitos da his­tória. O Ca­ti­lina de Cop­pola (li­vre­mente ins­pi­rado em per­so­na­gens de Ayn Rand) é um ar­qui­teto e um ci­en­tista, ao mesmo tempo. Sua maior des­co­berta–a que lhe valeu o prêmio Nobel–é a re­vo­lu­ci­o­nária subs­tância me­galon, com a qual ele sonha cons­truir uma utó­pica co­mu­ni­dade pa­ci­fi­cada cha­mada, jus­ta­mente, Me­ga­lo­polis.

Mas a utopia de Ca­ti­lina, como toda utopia, é também uma dis­topia. Se não deve haver dí­vidas, ainda assim a luta de classes não é o motor da his­tória. Ao con­trário, a re­volta das massas pa­rece ser apenas um mo­tivo para a as­censão de Ca­ti­lina (as massas nem apa­recem di­reito e acho que nem podem ser cha­madas de massas pro­pri­a­mente). Após a queda do sa­té­lite so­vié­tico (!) Car­tago (!), que des­trói boa parte da Nova Roma, Ca­ti­lina con­segue, ao menos mo­men­ta­ne­a­mente, apa­zi­guar as in­sa­tis­fa­ções de al­guns ad­ver­sá­rios, der­rotar ou­tros e ga­rantir a adesão do po­pu­lacho ig­naro à sua utopia me­galô­mana. O que vemos, então, é a con­cre­ti­zação da sua utopia: uma na­tu­reza como a de Blade Runner, muda, plas­ti­fi­cada, pra­ti­ca­mente sem vida, no centro da ci­dade de Nova Roma, como se pu­dés­semos sim­ples­mente erigir uma na­tu­reza que, es­va­ziada de toda outra vida que não a nossa, pu­desse sim­ples­mente ser apro­priada – e não ex­pro­priada (o que exi­giria dar algum jeito nos seus donos – ge­no­cidá-los, como o foram os povos na­tivos do Con­ti­nente ame­ri­cano, ou como os pa­les­tinos, desde a in­venção do Es­tado de Is­rael). É um mo­tivo en­dê­nico, no fim das contas, mas que Éden é esse? E mais: Éden para quem?

Acho que esse Éden na ver­dade não é nada ameno, mas é o pró­prio nada. É claro que não po­deria faltar, no meio disso tudo, uma his­tória de amor, traição e ciúme. Para isso, com­pa­rece Wow Pla­tinum (Au­brey Plaza, am­bi­gua­mente inex­pres­siva), jor­na­lista am­bi­ciosa, cor­rupta e ma­ni­pu­la­dora, como per­so­nagem que ten­siona as le­al­dades de todas as de­mais. É no ca­sa­mento de Wow Pla­tinum com Ha­milton Crassus III (John Voigt, outra atu­ação in­de­fi­nida) que a farsa da vestal acon­tece. Não darei esse spoiler, mas se o Jardim das De­lí­cias é um lugar onde os mai­ores pe­cados do amor e da se­xu­a­li­dade são li­vres, nada disso vemos surgir na Me­ga­lo­polis de Ca­ti­lina. Nada, sim, rei­teiro, pois não há ca­tarse da qual–ou na qual–re­sulte o pa­raíso pu­ri­fi­cado e o que apa­rece à nossa vista é a imagem ou de uma Nova Roma que nem a por­no­grafia de Ca­lí­gula con­segue emular ou a de uma Me­ga­lo­polis com­ple­ta­mente es­va­ziada de vida na­tural, tão ar­ti­fi­cial quanto a in­te­li­gência in­for­má­tica e maquí­nica que a pro­duziu para nossa con­tem­plação. Um lugar per­feito para o exer­cício do ni­i­lismo, a imagem trans­lú­cida de um lugar ne­nhum es­va­ziado de qual­quer vida. O con­trário do fas­cínio fu­tu­rista cau­sado pela Me­tró­polis de Fritz Lang.

Ca­ti­lina é César – o im­pe­rador, não um re­vo­lu­ci­o­nário, já que sua utopia não re­sulta de re­vo­lução po­lí­tica, so­cial ou econô­mica e pro­voca apenas um apa­zi­gua­mento das in­sa­tis­fa­ções pelo ma­ra­vi­lha­mento que a visão da Me­ga­lo­polis causa – um su­blime es­pe­ta­cular que a todos hip­no­tiza e mor­ti­fica os sen­tidos, anes­te­si­ando-os. Nesse sen­tido, a cons­trução vi­sual do filme pa­rece in­dicar um dis­tan­ci­a­mento re­la­ti­va­mente a essa epi­derme nar­ra­tiva – o ar­re­ba­ta­mento do olhar nunca é com­ple­tado, uma vez que é im­pos­sível dar conta de tudo o que apa­rece na tela, ao mesmo tempo que nosso olhar é do­mi­nado pelas ima­gens. Na ver­dade, o re­bus­ca­mento das ima­gens tec­no­lo­gi­ca­mente pro­du­zidas, a ar­ti­fi­ci­a­li­dade exa­ge­rada da fo­to­grafia di­gital, o tra­ta­mento de cores – tem­pe­ra­tura, sa­tu­ração, ni­tidez etc. – sem falar na abun­dância de de­ta­lhes que não pa­recem de­ci­sivos – tudo isso cansa o olhar. É como se o filme emu­lasse a ex­pe­ri­ência de es­go­ta­mento fí­sico após as horas que pas­samos di­ante das nossas te­li­nhas, usando a ci­ne­ma­to­grafia não para nos imergir na sua di­e­gese, mas para nos afastar do que se passa na tela. Não é só a quebra da quarta pa­rede que faz isso – e o filme teve al­gumas ses­sões ao vivo, em que, a certa al­tura, um ator se po­si­ci­onou em pessoa frente à pla­teia, no ci­nema, para fazer uma per­gunta a Cesar Ca­ti­lina, que res­pondeu ao vivo, na tela – seria essa uma des­culpa para uma pre­gação di­reta à pla­teia ou mais uma rein­venção do efeito de es­tra­nha­mento? Ima­gino a sur­presa que eu teria num mo­mento como esse, ao menos ini­ci­al­mente! Mas essa sur­presa, após algum tempo, re­sul­taria em quê? Só quem a pre­sen­ciou pode dizer. O que me pa­rece, e me pa­receu ao ter visto o filme, in­fe­liz­mente sem essa per­for­mance ao vivo, é que es­tamos sen­tados numa po­sição incô­moda, a de es­pec­ta­dores da ar­ro­gância me­galô­mana das elites, ou de um di­retor que faz parte dessas elites, pes­soas riquís­simas que tudo de­cidem sem que nós, meros mor­tais, par­ti­ci­pemos de ma­neira mais cri­a­tiva ou se­quer ativa. Um ator fez uma per­gunta a uma per­so­nagem, mas o mi­cro­fone, ou te­le­fone, não foi aberto ao pú­blico. A per­so­nagem or­dena ao tempo que pare, e o tempo, no filme, para. O que es­tamos a tes­te­mu­nhar? É re­a­lismo fan­tás­tico ou é apenas ar­ti­fi­cial, talvez até banal a ponto de dar ver­gonha alheia? Mas, sin­ce­ra­mente, ver­gonha alheia é uma sen­sação muito comum nos dias de hoje, não? Talvez só menos comum do que a de im­po­tência di­ante do es­pe­tá­culo mun­dano.

Como convém a um re­tó­rico dos nossos tempos, Ca­ti­lina não é nem de es­querda nem de di­reita; na ver­dade, nin­guém no filme tem po­sição ide­o­ló­gica muito es­cla­re­cida, o que per­mite supor que não se opõem ao modo de ope­ração so­cial ins­tau­rado. Cí­cero, lem­bremos, de­fendia a Re­pú­blica Ro­mana contra o cons­pi­rador que de­se­java con­quistá-la; no filme, apesar das de­cla­ra­ções do ci­ne­asta, a si­tu­ação não tão di­versa: o pre­feito é um homem da ordem, o ar­qui­teto quer por mais ordem na ordem, não há de­sejo de trans­for­mação ra­dical. É como se a grande nar­ra­tiva dos po­de­rosos do mundo lu­tando pelo poder pas­sasse à nossa frente, di­ante dos nossos olhos, de­baixo dos nossos na­rizes, e não pu­dés­semos fazer nada. É na­tural que assim seja, ou me­lhor, é assim que as coisas são. Nem na nar­ra­tiva fic­ci­onal as coisas mudam.

De­baixo, não, acima dos nossos na­rizes, pois é nesse lugar de baixo que somos postos, o que faz dessa nar­ra­tiva uma ficção nada in­gênua. Isso só me ficou claro no fi­nal­zinho mesmo do filme, quando a pers­pec­tiva de contre-plongée nos é in­dis­cu­ti­vel­mente im­posta. Per­doem o tec­ni­cismo, mas é ne­ces­sário. Contre-plongée, ou contra-mer­gulho, é o mesmo que em in­glês diz-se low-angle shot, to­mada de ân­gulo in­fe­rior. É uma visão de baixo para cima na fo­to­grafia e no ci­nema, como quando, do chão, tenta-se fo­to­grafar pré­dios muito altos, por exemplo.

No ci­nema, o en­qua­dra­mento da nossa visão de es­pec­ta­dores é co­mu­mente feito em um eixo ho­ri­zontal. Da pla­teia, vemos de um ponto lo­ca­li­zado na al­tura do meio do su­jeito. Um ci­ne­asta como Ya­zu­jiro Ozu pode levar essa téc­nica à ri­gidez mais do que per­feita a ponto de a ri­gidez de­sa­pa­recer – é na­tural ver pes­soas ajo­e­lhadas como se es­ti­vessem na al­tura dos nossos olhos. Já as vistas in­cli­nadas, seja em mer­gulho de cima para baixo–plongée– ou em contra-mer­gulho, são muito menos na­tu­rais. A pers­pec­tiva da águia ou da rã, não im­porta, são ime­di­a­ta­mente iden­ti­fi­cadas por nós como ar­ti­fi­ciais. Por isso, seu efeito ci­ne­ma­to­grá­fico é forçar a atenção, au­men­tando a im­pressão já cau­sada pelo en­qua­dra­mento. A pers­pec­tiva des­lo­cada ver­ti­cal­mente pro­voca uma in­dis­far­çável sen­sação de an­ti­na­tu­ra­li­dade e, se com­bi­nada ao mo­vi­mento, pode pro­vocar até mesmo náu­seas ou ter­rí­veis an­gús­tias, dentre ou­tras sen­sa­ções. No filme de Cop­pola, esse re­curso é usado com a pre­cisão e a ma­es­tria de um Orson Welles, mas não apenas para criar pro­fun­di­dade de campo e es­paço, e sim para, na imagem final, nos in­ter­pelar como es­pec­ta­dores.

Ao nos impor a pers­pec­tiva de baixo para cima, pa­rece que Cop­pola está nos ex­pul­sando da zona de con­forto, como se diz. É ine­gável que as ima­gens de Me­ga­ló­polis, em sua ima­te­ri­a­li­dade sa­tu­rada de efeitos es­pe­ciais, pro­pi­ciam uma ex­pe­ri­ência incô­moda. É como se o filme nos im­pe­disse de nos re­con­for­tarmos com a po­sição de meros es­pec­ta­dores que acei­tamos ao en­trar no ci­nema ou ao sentar no sofá da sala, se virmos o filme por stre­a­ming. Con­tri­buem para esse efeito os muitos acon­te­ci­mentos que não dão em nada no filme. O sa­té­lite Car­tago, por exemplo, ocupa toda a pri­meira me­tade da his­tória, para pra­ti­ca­mente de­sa­pa­recer na se­gunda parte, de­pois de causar o bu­raco onde será cons­truída a Me­ga­ló­polis (acho que é só isso mesmo). Per­so­na­gens vêm e vão ale­a­to­ri­a­mente, como Nush “The Fixer” Berman (Dustin Hoffman), que entra e sai de cena sem co­e­rência apa­rente para pra­ticar ações de re­le­vância dis­cu­tível. Ou a nar­ração de Fundi Ro­maine (La­wrence Fish­burne), mo­to­rista e as­sis­tente de Cesar Ca­ti­lina. É im­pos­sível, aqui, exa­minar de­ti­da­mente cada uma das per­so­na­gens se­cun­dá­rias, mas di­fi­cil­mente as fe­mi­ninas pas­sa­riam no teste de Be­chdel, assim como todas as de­mais pos­si­vel­mente su­cum­bi­riam à uma lei­tura contra-co­lo­ni­za­dora. Às pontas soltas na nar­ra­tiva e às di­fi­cul­dades de cons­trução das per­so­na­gens, juntam-se as que não estão soltas e pa­recem exa­ge­ra­da­mente ób­vias ou for­çadas. O ex­cesso de ci­ta­ções ci­ne­ma­to­grá­ficas, li­te­rá­rias e fi­lo­só­ficas, al­gumas quase com re­fe­rência da pá­gina ou do fo­to­grama de que foram ti­radas; a exor­tação à no­breza por parte de pes­soas du­vi­do­sa­mente no­bres; o tempo que para, mas não para. De­vemos en­golir tudo isso sem falar nada? Como assim?

Eu não tenho dú­vidas de que Cop­pola re­al­mente acre­dita nos ideais de no­breza e con­duta ex­pressas nas ci­ta­ções de Sha­kes­peare, Emerson e Marco Au­rélio (dentre muitas ou­tras) de­cla­madas pelas suas per­so­na­gens. Mas du­vido muito que ele acre­dite que esses ideais podem de al­guma forma valer al­guma coisa no mundo em que vi­vemos, esse mundo que está re­tra­tado, ainda que por ana­logia, na dis­topia que é a utopia da Me­ga­ló­polis. A farsa da vestal, já men­ci­o­nada, pa­rece exem­plar, nesse sen­tido: na velha Roma, as vir­gens que cul­tu­avam a deusa Vesta eram sa­cer­do­tisas, guar­diãs do fogo sa­grado, en­car­na­ções sim­bó­licas de pu­reza e de po­tência fe­cunda in­fi­nita; na Nova Roma, a virgem é falsa e nada tem de pura ou casta, ao con­trário.

Mas Cop­pola, se pa­rece des­con­fiar do nosso pre­sente, não me pa­rece ter re­a­li­zado um filme mo­ra­lista ou re­a­ci­o­nário. Penso que ele con­tinua acre­di­tando no ci­nema – prin­ci­pal­mente, no seu pró­prio ci­nema – como forma au­tên­tica e cri­a­tiva tanto de ex­pressão ar­tís­tica quanto de juízo crí­tico e de­núncia, sem deixar de ser ao mesmo tempo cé­tico quanto à ca­pa­ci­dade do ci­nema de in­citar as sen­si­bi­li­dades, como um dia já foi pos­sível acre­ditar. Cé­tico, talvez, não seja a me­lhor pa­lavra. Um re­a­lista de­sen­can­tado, eu diria, mas não con­for­mado. Basta lem­brar que é im­pos­sível contar a his­tória do sé­culo XX sem o ci­nema para ima­ginar o quanto a vida so­cial já foi per­meada e co­lo­ni­zada por filmes. Não é só a in­ca­pa­ci­dade da arte de tran­sitar ou me­diar entre as es­feras da vida so­cial em geral – ali­ando-se a umas, opondo-se a ou­tras – que o filme pa­rece te­ma­tizar, mais uma ca­mada, um ter­ceiro tema, ro­mân­tico, como as ci­ta­ções de Go­ethe su­gerem; mas a pró­pria ca­pa­ci­dade do ci­nema de con­ti­nuar a ser so­ci­al­mente in­dis­pen­sável no sé­culo XXI – essa sim, uma quarta ca­mada do filme, menos su­per­fi­cial e nem por isso mais densa, mas ainda tênue e me­ra­mente su­ges­tiva. Pois quem é que ainda vai ao ci­nema hoje em dia? É certo que al­guém ainda vai, como eu, mas, com os preços dos in­gressos no pa­tamar em que estão e o fim dos ci­nemas de rua, é ine­gável que o ci­nema atual está longe de ser a arte po­pular que foi no sé­culo XX. E se ainda há quem vá ao ci­nema, como eu, para ver filmes como Me­ga­ló­polis, então não posso deixar de ad­mitir que a ex­pe­ri­ência da ci­ne­filia não deixou de fazer parte da vida so­cial, mas se tornou um mer­cado de nicho. Com o es­go­ta­mento do mer­cado de stre­a­ming des­pon­tando no ho­ri­zonte, o for­mato das sé­ries não de­monstra nem a mesma vi­va­ci­dade nem a mesma dis­po­sição para a lon­ge­vi­dade que o ci­nema con­quistou. Che­gamos a uma con­tra­dição, então?

Uma con­tra­dição que não em­bota o pen­sa­mento e que não se re­leva fa­cil­mente. A todo mo­mento esse filme me­galô­mano pa­rece querer nos afastar da his­tória que conta pelo exa­gero dos pró­prios meios ci­ne­ma­to­grá­ficos. Se fosse um ro­mance, é como se o nar­rador nos con­tasse: essa his­tória não vai ofe­recer alívio, exemplo ou re­denção, de­sista. No filme, a so­bre­carga vi­sual, o ex­cesso so­noro, a ar­ti­fi­ci­a­li­dade dos sen­ti­mentos das per­so­na­gens, a ino­cui­dade da moral, a falta de ero­tismo nas cenas de amor e sexo, o he­roísmo pós-mo­derno, fra­tu­rado e frágil, a hi­po­crisia da po­lí­tica, a vida das elites dis­tantes do chão da gente comum, uma gente, aliás, sem nome e sem papel, de tão comum. Só vemos farsas dentro de uma fá­bula es­sen­ci­al­mente far­sesca. A fa­lência das grandes nar­ra­tivas em uma grande nar­ra­tiva, a gui­nada ine­vi­tável das uto­pias ao ca­minho sem volta das dis­to­pias fil­mada em ci­nemão, um filme que para re­tratar o fim do ci­nema tal qual o co­nhe­cemos até o final do sé­culo pas­sado não fala de ci­nema, mas de ur­ba­nismo, po­lí­tica e sei lá mais o quê, mas se põe como o pró­prio ci­nema que fala ao vivo aos es­pec­ta­dores, sejam quem e quantos forem. O que leva a pensar em quais formas de cri­ação es­té­tica do­mi­narão o sé­culo XXI – con­se­guiria o ci­nema so­bre­viver além da téc­nica? Mas isso me lembra uma frase de outro di­retor, Terry Gil­liam, se não me en­gano, que seria: “O ci­nema é como um di­nos­sauro que muita gente tenta matar com tiros de re­vólver, mas qual­quer filme do Spi­el­berg mostra que é im­pos­sível matar di­nos­sauros desse jeito”. Em outro de­poi­mento, Cop­pola afirma mesmo isso: o ci­nema talvez morra para re­nascer de outra forma, assim como a nossa ci­vi­li­zação um dia dei­xará de ser o que é para outra surgir. Essa ana­logia é dele, não minha, o que me leva a pensar que Cop­pola não con­si­dera se de­dicar à ati­vi­dade de matar di­nos­sauros daqui em di­ante. Ufa!

Até que, no final, da pers­pec­tiva de rã, aquela que nos é im­posta, como a parte que nos cabe desse la­ti­fúndio, vemos uma cri­ança no ponto focal da imagem que se fecha em vi­nhetas. A cri­ança é de­po­si­tada, com so­lene dis­curso, em um chão trans­pa­rente, acima de nossas ca­beças. Olhamos para ela de baixo para cima, é im­pos­sível não a vermos, até que só vemos a ela, sem saber se po­demos tocá-la. De­pois que o foco se fecha com­ple­ta­mente, fica a per­gunta: o que essa cri­ança re­pre­senta, afinal? Nada? Uma es­pe­rança de fu­turo? O úl­timo dos males da caixa de Pan­dora, também ci­tada–ob­vi­a­mente, a esta al­tura já po­demos dizer–no filme? A ca­mada mais pro­funda e es­sen­cial do filme, enfim, aquela ca­mada que nos im­plica no con­tra­campo in­con­tor­nável sem o qual o campo do vi­sível não exis­tiria? Di­fícil afirmar. Afinal, o que vemos no ci­nema não tem ca­madas, a tela é só um pano, não vá­rios so­bre­postos, uma imagem é uma imagem e talvez seja sempre a mesma que es­pe­ramos ver a cada vez.

A meu ver, de­pois desse filme tão apa­ren­te­mente am­bíguo quanto des­con­cer­tante, há uma per­gunta pos­sível e apenas pos­sível: até quando nos con­ten­ta­remos em ficar sen­tados e a tudo as­sistir pas­si­va­mente, es­pe­rando res­postas de um filme, de um di­retor de ci­nema, de po­lí­ticos que não andam entre nós, de sei lá mais quem? Per­doem-me, mas não re­sisto a uma pa­rá­frase to­ta­li­za­dora: a quem cabe a res­pon­sa­bi­li­dade pelo mundo que que­remos, afinal, a não ser a nós mesmos?

Sau­da­ções e até 2025.

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